A SOLICITAÇÃO DA EUTANÁSIA À LUZ DA VISÃO CARL ROGERIANA
REQUEST FOR EUTHANASIA IN THE LIGHT OF THE CARL ROGERIANA VISION
Larissa Fonsêca de Souza & Jaldo Cambuy da Silva Júnior
Conselho Regional de Psicologia de Bahia & Centro Universitário Faculdade Guanambi / Brasil
Descargar en PDF
Larissa Fonsêca de Souza: Psicóloga e pós-graduanda em Psicologia Hospitalar. Atuante na Consulth Saúde (Guanambi-BA), Instituto de Mastologia (Guanambi-BA) e coordenadora do Grupo de Interiorização, subsede Guanambi, do Conselho Regional de Psicologia da Bahia. Endereço de e-mail: larissafonsecapsi@gmail.com
Jaldo Cambuy da Silva Júnior: Psicólogo, Especialista em Psicologia escolar e da aprendizagem e em Saúde mental, Mestre e Doutor em Terapia Intensiva. Atuante na Consulth Saúde (Guanambi-BA), Centro de Atenção Psicossocial (Guanambi-BA) e docente no Centro Universitário Faculdade Guanambi (UniFG). Endereço de e-mail: jaldocambuyjr@yahoo.com.br
Recibido: 15 de Diciembre de 2020
Aprobado: 30 de Diciembre de 2020
Referencia Recomendada: Fonsêca de Souza, L., & Cambuy da Silva Júnior, J. (2020). A solicitação da eutanásia à luz da visão Carl Rogeriana. Revista de Psicología GEPU, 11 (2), 35- 54.
Resumo: Ao considerar a morte como um tema interdito e a terminalidade como processo chegado à interdição, versou-se sobre a eutanásia e aspectos particulares e psicológicos (pouco discutido e considerado), possivelmente motivadores ao pedido, tido como tabu, de fim da existência. Para esta análise, utilizou-se a Abordagem Centrada na Pessoa, proposta pelo psicólogo Carl Roges, a fim de compreender o sujeito a partir das experiências e percepções de suas vivências, através dos conceitos primordiais desta teoria. Foi percebido que os pedidos de abreviação da morte estão relacionados a incongruência entre o self real e self ideal, ausência de consideração positiva incondicional, com distorções nas percepções realistas dos fatos, impactando na direção selecionada para o crescimento, minimizando possibilidades de escolhas diante da tendência atualizante. Destaca-se a importância do acompanhamento psicológico em pacientes terminais que, dotados das três condições básicas da ACP, o processo psicoterápico ocorra e obtenha prognóstico de comportamento congruente.
Palavras-chave: Eutanásia, Hospital, Humanismo, Morte, Psicológico.
Abstract: Considering death as an interdicted theme and terminality as a process that came to interdiction, it was discussed about euthanasia and particular and psychological aspects (little discussed and considered), possibly motivating the request, considered taboo, at the end of existence. For this analysis, the Person Centered Approach, proposed by the psychologist Carl Roges, was used in order to understand the subject from the experiences and perceptions of their experiences, through the fundamental concepts of this theory. It was noticed that the requests for death abbreviation are related to the incongruity between the real self and the ideal self, absence of unconditional positive consideration, with distortions in the realistic perceptions of the facts, impacting in the direction selected for growth, minimizing the possibilities of choices in the face of the trend updater. It highlights the importance of psychological monitoring in terminal patients who, endowed with the three basic conditions of PCA, the psychotherapeutic process occurs and obtains a prognosis of congruent behavior.
Key Words: Euthanasia, Hospital, Humanism, Death, Psychological.
Introdução
A eutanásia, epistemologicamente falando, vem do verbo grego “euthonateo” a junção do adjetivo “eu”, que significa boa, e do substantivo “thanatos”, que significa morte, unidos significam “boa morte”, “morte tranquila” ou “morte apropriada”. A palavra eutanásia começou a ser utilizada no século XVII, a partir da obra de Francis Bacon (filósofo inglês) em 1623, em idiomas ocidentais, com o mesmo significado supracitado, sendo um método adequado para pessoas com enfermidades incuráveis, por não causar dores e angústias (Espínola, 2000; Pessini & Barchifontaine, 2002; Pereira & Pinheiro, 2008; Morais, 2010; Freitas, 2012).
Pessini e Barchifontaine (2002) referem eutanásia como a retirada da vida da pessoa por concepções humanitárias, tanto para a mesma, quanto para a sociedade. Assim, há diferenciação entre os tipos de eutanásia: eutanásia ativa, que diz respeito a retirada da vida do enfermo por meio de um ato médico (como a ministração de uma alta dosagem de morfina com a intenção de colocar um fim na vida); e a eutanásia passiva, que não diz respeito a uma ação médica, mas de uma omissão, não sendo ofertado algum procedimento médico terapêutico que prolongaria a vida do acometido (como não ofertar a ventilação mecânica).
Ao falar de morte, cabe aqui ressaltar sua definição que, segundo Morais (2010), é compreendida pela falta permanente de vida no corpo. E, do ponto de vista religioso, Silva (2013) versa ser uma forma de penalização para uma vida que não é digna de ser vivida ou uma maneira de transcender o eu. Já o processo de morrer, pode ser estabelecido pelo intervalo em que a patologia passa a ser incurável e o acometido para de responder a qualquer tratamento que lhe é ofertado (Morais, 2010).
Pacientes que se encontram em estado terminal, frequentemente, pensam que a morte chegará rápido e costumam expressar isto ao médico, solicitando a aceleração da morte (ou seja, a eutanásia). Porém, as concepções da morte e sua indução, geralmente, não expressam o desejo verdadeiro de suicídio e, com base nisto, tem-se diversas vertentes que requerem análise (Vespieren, 1998).
Diante disto, utilizou-se, como base de análise, os postulados da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) que, como refere Davidoff (2001), foi proposta pelo psicólogo americano Carl Rogers (1902-1987). Este último, iniciou graduação de Teologia no Union Theological Seminary, porém, decidiu terminar seus estudos na área da Psicologia no Teacher College na Universidade de Colúmbia, conforme destacam Fadiman e Frager (1986). Schultz e Schultz (2008) contam que Rogers criou a abordagem popular de psicoterapia, conhecida, a priori, como não diretiva ou centrada no cliente, porém, passou a ser chamada de terapia centrada na pessoa.
O presente artigo buscou compreender e conceituar os fenômenos psicológicos, como sentimentos suscitados, possíveis influências externas, distorções das percepções e desejos imbricados nas solicitações de eutanásia, através da visão do psicólogo e sua teoria acima citados.
Método
Este artigo traz como base a pesquisa de revisão de literatura, sendo o caráter do estudo uma pesquisa estratégica e exploratória, com abordagem qualitativa.
O estudo norteou-se através da pesquisa bibliográfica que, para Cozby (2014), amplia o conhecimento sobre a temática e os resultados anteriores, clareia as ideias e auxilia na formulação do estudo.
A pesquisa estratégica busca fornecer o conhecimento para subsidiar possível forma de resolução de problema, e a exploratória é a modalidade que possibilita aumentar e esclarecer o conhecimento sobre um tema, bem como, formular hipóteses e impasses para estudos posteriores. Nesse aspecto, a abordagem qualitativa é baseada na coleta de dados em interações sociais ou interpessoais, analisando-os com base nos significados que indivíduos atribuem ao construto (Campos, 2008; Cozby, 2014; Deslauriers & Kérisit, 2014; Gil, 2014).
A coleta do material ocorreu durante o ano de dois mil e dezoito e o mês de outubro do ano de dois mil e dezenove, sendo o último período também destinado à análise dos dados específicos da temática do presente artigo.
O aporte teórico foi encontrado a partir das palavras-chave: eutanásia, morte, implicações da eutanásia e aspectos psi eutanásia. Foram utilizados os operadores booleanos $ e *, para ampliar a busca de palavras com conteúdos semelhantes (como o psi); o operador booleano “”, para palavras compostas; e o operador booleano TW, para que as palavras pesquisadas fossem encontradas em qualquer parte do arquivo. As literaturas foram retiradas de livros, dissertações, revistas que abordam os assuntos pretendidos e plataformas digitais, como a Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e Scientific Eleetronic Library Online (SciELO). No que tange ao período de publicação dos trabalhos utilizados, não foi estabelecido tempo, visto que há escassez de produções na temática dos aspectos psicológicos em torno da eutanásia, bem como, trabalhos com achados significativos e particularmente atuais nas práticas, apesar da antiga data de publicação. Entretanto, as bibliografias consultadas são datadas entre 1981 e 2019.
Os dados obtidos foram analisados com base na Teoria/Abordagem Centrada na Pessoa, proposta pelo psicólogo Carl Rogers que, como mencionam Schultz e Schultz (2008), sustenta que o único modo de analisar a personalidade de uma pessoa seria por meio das experiências subjetivas e como percebe e aceita como reais os eventos da própria vida. Assim, a teoria de Rogers considera como premissa fundamental a hipótese de que as pessoas utilizam a experiência própria para se definirem, desenvolverem seu autoconceito (Fadiman & Frager, 1986; Davidoff, 2001).
Dada a insuficiência de produções com relação aos aspectos psicológicos nos pedidos de eutanásia e da inserção da psicologia nesse saber, necessitou-se maior imersão da ACP, ao invés de intercalação ampla e diversificada de características e autores sobre a temática.
Resultados e Discussão
Terminalidade
De acordo com Schramm (2002), vida e morte são aspectos a serem vistos como inseparáveis da humanidade, permeada por situações de finitude. O fim da vida é representado por dois sentidos através da morte, o de término cronológico da existência humana e a abertura para se pensar na transcendência da vida, uma vida após a morte (Schramm, 2002; Siqueira, 2005).
Em uma sociedade que há exploração mercantil, que sujeitos têm seus desejos negados, a perda da aptidão produtiva, colocando-os fora da competição que há no meio social, acarreta um sentimento intensificado de desamparo social. Assim, a falta de perspectiva de existência, juntamente com o abandono/desamparo, é posta como primeiro sinal de desespero frente a realidade vivenciada. Uma patologia terminal/degenerativa, que está diretamente ligada à morte, pode causar discriminação e/ou rejeição ─ somando-se às ideias distorcidas que a sociedade nutre sobre tais patologias ─ em várias circunstâncias, seja no seio familiar ou em ocasiões que desempenham atividades produtivas, dando ao sujeito o estigma de desacreditado (Angerami, 2010).
A existência humana é única e finita, por isso, faz-se necessário que se permita sentir e vivencia-la em sua magnitude. Porém, é amplamente complexo aceitar a ideia que, há momentos em que nossa fisiologia precisa da morte, igualmente como necessita de alimento, descanso e sono (Marengo; Flávio & Silva, 2009; Angerami, 2010; D. A. Santos, et al., 2014).
Em momentos complexos, que a morte está a chegar, necessita-se de profissionais acolhedores, pois o enfermo continua vivo frente à experiência de finitude e morte inevitável. Compreende-se que não há como evitar o processo de morte e seus conflitos internos na carreira dos profissionais da saúde, ao perceberem que não podem concorrer com o tempo chegado, tomando conta o sentimento de fracasso na cura irreversível, necessitando de preparação íntima para lidarem com as aflições e desenvolverem um trabalho humanizado (Marengo; Flávio & Silva, 2009; Angerami, 2010; D. A. Santos et al., 2014).
A morte e seus enquadres
O fato de se encontrar defronte à vida e à morte costuma ser um desafio que necessita de amplo processo de aprendizagem, tanto na esfera pessoal, como social e comunitária, sendo notadamente necessário considerar as práticas pedagógicas que abarcam os sentidos da vida e da morte, investindo em educação que busque a capacitação para lidar com situações de iminência de morte, no campo pessoal e profissional (Pessini, 2004; Marengo; Flávio & Silva, 2009). As pessoas passam décadas de suas vidas nas escolas, se preparando para a socialização, assim também deveriam utilizar o mesmo tempo para se prepararem para o fim da existência (ou seja, a educação para a morte), mas não apenas em escolas, e sim na sociedade como um todo. Essa educação envolve várias esferas da vida como, relacionamentos, comunicação, perda de pessoas importantes para si, confronto com a própria morte e demais (Kovács, 2005).
Os comportamentos emitidos frente a morte e o morrer demonstram que a sociedade considera a morte como um tabu, em que falar sobre morte é doentio. As crianças são apartadas desses debates com a justificativa de poupá-las e, diante da morte, são enganadas de que o morto fez uma viagem, sendo essa falta compensada com presentes e histórias ilusórias não convincentes, fazendo com que a criança protegida perceba a realidade e produza a desconfiança nos adultos que a cercam (Kubler-Ross, 2008).
Pessini (2004) versa que precisa-se, também, aprender e vivenciar a amplitude do cuidado e amor voltado ao paciente em estado grave, terminal e/ou vegetativo, pois, da mesma maneira que necessitou-se de ajuda para nascer, é necessário auxílio para morrer. Dessa forma, ocorre a solidariedade eficaz, em que se alia a competência científica e humana a serviço da pessoa enferma, garantindo a dignidade no fim da vida.
O hospital é o principal local em que a morte está presente, ambiente que é difícil viver com dignidade, que as necessidades subjetivas do enfermo não fazem parte da rotina da equipe, que foi preparada para curar, estando a morte na contramão dos fazeres. A morte, muitas vezes, é causadora de dores e sofrimentos intensos aos envolvidos, fazendo-se primordial a sua discussão no hospital, assim como, a morte com dignidade e questões que giram em torno da distanásia, eutanásia, ortotanásia e mistanásia (Kovács, 2005; Marengo; Flávio & Silva, 2009; Angerami, 2010).
A prática eutanásica
Inicialmente, conforme referem Felix e colaboradores (2013), a eutanásia foi definida como a ação de tirar a vida do sujeito, porém, após ponderações sobre o tema, foi classificada como a morte sem dor e sofrimento desnecessários.
A partir do século XX, a visão a respeito da eutanásia foi modificada, tirando-a do campo da política pública, passando a ser compreendida como uma prática negativa. Assim, a palavra eutanásia foi utilizada, pelo terceiro império alemão, em sentido oposto aos princípios da mesma, em que a morte não era antecipada de forma piedosa, digna e destinada a pessoas com enfermidades terminais e/ou incuráveis, e sim por genocídio (Siqueira-Batista & Schramm, 2002).
Segundo Pessini (2010), a eutanásia é definida pela legislação da Bélgica, em seu art. 2, como o ato intencional feito por terceiros que cessa, a pedido, a vida da pessoa. Pereira e Pinheiro (2008) e Felix et al. (2013) referem que o ato eutanásico é compreendido como a morte digna, proporcionada por compaixão, piedosamente, sem sofrimento ou dor ao acometido por uma doença vegetativa imutável ou em estágio terminal que sofre intensamente, com a finalidade de suspender um sofrimento que é insuportável, como sinalizam Siqueira-Batista e Schramm (2002).
A eutanásia é dividida em várias modalidades, podendo ser classificada nas formas a seguir: eutanásia penal ou punitiva, quando utilizada em casos de pena de morte, como punição para delito grave de acordo com a legislação vigente; eutanásia voluntária, quando há consentimento do paciente e atende-se ao pedido deste; eutanásia involuntária, ocorre contra a vontade do paciente; eutanásia não voluntária, é praticada sem a expressão da posição do paciente frente à prática; eutanásia positiva, quando é praticada sem dor e com fins misericordiosos, geralmente por intervenção médica adequada, com administração de fármacos letais; eutanásia por omissão ou negativa, quando uma assistência médica vital não é ofertada; eutanásia agônica, morte provocada em um doente terminal, sem que haja dor, com o intuito de finalizar o sofrimento (S. C. P. Santos, 2011).
A autora descreve, ainda, as seguintes formas de eutanásia: a eutanásia de duplo efeito, quando a morte é acelerada como consequência indireta ─ efeito indesejado ─ de determinados fármacos administrados por médico (como altas doses para alívio da dor que acarretam na antecipação da morte); eutanásia lenitiva, quando são utilizados meios para suprimir o sofrimento de doentes terminais, sem encurtar a vida, aguardando que a patologia provoque a morte; eutanásia occisiva, quando o médico usa métodos para liquidar o paciente e não mais sofra; eutanásia homicida, ocorrência do homicídio piedoso para libertar o sujeito de sua doença terminal com a morte; eutanásia eugênica ou eutanásia do tipo econômica ou social, é a extirpação do sofrimento de doentes incuráveis, inválidos e velhos (encaixando sujeitos com malformação congênita) com o intuito de aliviar da sociedade o peso de pessoas inúteis economicamente (S. C. P. Santos, 2011).
A Bélgica e a Holanda, em 2012, foram os primeiros países a legalizarem a eutanásia no âmbito da assistência à saúde ─ dentre esses países europeus, posteriormente, Luxemburgo também passou a autorizar a prática ─, dispondo, entre ambos, diretrizes similares para a efetivação da eutanásia. Porém, do ponto de vista popular há uma distinção, em que a luta pelo uso dos cuidados paliativos seria pautada pela comunidade religiosa, enquanto a luta pela utilização da eutanásia seria dos ateus ou agnósticos (Pessini, 2010; Kovács, 2014).
Castro et al. (2016) assinalam que, no Ocidente, a eutanásia é legalizada em alguns países, porém, apesar de o público alvo, via de regra, ser o mesmo, os critérios para a efetivação da prática eutanásica se distinguem. A título de demonstração de critérios, a legislação belga autoriza a eutanásia e expõe pontos a serem considerados a priori, sendo eles: o paciente ser menor emancipado ou adulto, estando capaz e consciente no momento do pedido (da eutanásia); o pedido foi voluntário, repensado e sem coações externas; o solicitante está em condição médica irreparável, com queixas permanentes e insuportáveis de sofrimento mental e físico, que não pode ser minimizado e resultante de sua patologia grave ou incurável (Pessini, 2010).
A solicitação da eutanásia e a teoria rogeriana
A ideia de que os indivíduos possuem as ferramentas para construção de suas próprias vidas, livres para realizarem escolhas sobre os seus atos, está no cerne das filosofias da terapia humanista existencial. Os psicólogos da filosofia fenomenológica existencial humanista voltam-se à compreensão do ser humano a partir do self, o “si mesmo”, que tem por definição um conceito interno (modelo, teoria ou imagem que o indivíduo tem do “eu” ou do “mim”), que se lapida à medida que ocorre a interação entre as pessoas, sendo mutável, instável e encontra-se dentro do campo da experiência. Rogers utilizou o termo self para caracterizar o constante processo de conhecimento, o que compreende de si, com base em experiências passadas, estimulações presentes e perspectivas futuras (Fadiman & Frager, 1986; Davidoff, 2001).
A forma que os sujeitos agem, sofre influências do self ̶ também conhecido como autoconceito ̶ , estes atos, por sua vez, acarretam mudança nos autoconceitos. Ou seja, os fatos que acontecem com os sujeitos têm contribuições significativas de como os próprios compreendem a si e a sua vida (capacidade para o crescimento, finalidades, conceitos, valores, percepções), o autodiscernimento. Para Rogers, a interação com o outro habilita uma pessoa a experienciar, encontrar, encobrir ou descobrir o self real diretamente. Diante disto, considera-se que é necessário analisar uma pessoa não de forma fragmentada e com acréscimos, mas em sua totalidade, integrando o que ela pensa, age, imagina e sente com a realidade em que vive diariamente (Fadiman & Frager, 1986; Davidoff, 2001; Schultz & Schultz, 2008).
Emanuel (2017) aborda que a principal causa pela qual as pessoas buscam a eutanásia não é a dor. E interroga que, se não for pela dor, qual seria o motivo de os pacientes solicitarem a eutanásia? Desesperança, depressão, cansaço da vida, perda de autonomia e monitoramento, afirma. Discute que esses fatores são de ordem psicológica, não física, e não se amenizam com o aumento da administração de morfina, mas com psicoterapia e antidepressivos.
Entretanto, segundo Pessini e Siqueira (2019), menos de 4% dos pacientes que pediram suicídio assistido, tiveram assistência psicológica em Washington e, semelhantemente, no Oregon. Mesmo ao considerar as questões psicológicas como causa principal do suicídio convencional/tradicional ou assistido (não diferente dos casos de eutanásia), este aspecto é pouco relevante para os médicos da jurisdição em estados que a eutanásia e o suicídio assistido são legalizados. Reconhecendo que os motivos principais para as solicitações são psicoexistenciais, o fornecimento de acompanhamento psiquiátrico aos acometidos consistiria na forma mais adequada de se prestar atendimento, antes que decisões irreversíveis sejam adotadas por parte da medicina (Emanuel, 2017; Pessini & Siqueira, 2019).
Diante disso, Espínola (2000) realizou uma pesquisa e identificou a opinião dos médicos sobre o comprometimento mental diante da solicitação da eutanásia em pacientes terminais. Em amostra composta por 45 profissionais da medicina, 35% (n=16) discordaram fortemente desta influência, 44% (n=20) discordam, 11,1% (n = 5) concordam e 8,9% (n = 4) concordam fortemente.
Conforme referido sobre a ausência de acompanhamento psicológico, na maioria dos casos solicitantes da prática eutanásica, cabe ressaltar que, segundo Feist, Feist e Roberts (2015), estando presentes na relação entre o cliente e o terapeuta as condições de escuta empática do terapeuta, a consideração positiva incondicional e a congruência, o processo terapêutico de mudança iniciará e, quando ocorrer, certos resultados podem ser almejados e alcançados. Rogers (2009) expõe que a terapia desenvolverá um papel importantíssimo na liberdade e na facilidade de atuação da tendência organísmica em busca do desenvolvimento psicológico ou da maturidade, facilitando a transformação pessoal e resultados positivos, a partir das condições supracitadas e a congruência, quando a tendência estiver inacessível. No contexto em questão, poderia ocorrer a minimização da incongruência, aproximação dos selfs e das experiências reais, favorecendo novas perspectivas (para além da morte) de crescimento através da tendência atualizante, conforme acima sugeriu Emanuel (2017).
Quanto às opiniões acerca da eutanásia, Polaino-Lorente (1981) destacou que as de jovens da área urbana diferem da pública, se compreendida a perspectiva da prática eutanásica pelo viés do cristianismo, tendo-a como negativa. Apesar de afirmar as dúvidas existentes diante dessa percepção dos jovens, o autor levantou a discussão acerca das possíveis relações entre hedonismo, medo da morte e a referida prática.
Nessas hipóteses de relações, percebe-se que a atribuição ao hedonismo pode ser explicada pela ameaça do self ideal estabelecido, que se encontra em perigo diante da morte e, se está em ameaça e não se pode alcançar, prefere-se pela eutanásia, por não conceber novas vivências em direção ao crescimento, semelhantemente, diante do medo da morte. As dificuldades neuróticas, insatisfação e desconforto se dão na diferenciação entre o self real e o self ideal, e na distância entre estes, ou seja, a dificuldade em aceitar o que realmente se é, em detrimento do que se quer ser, distanciando-se da realidade e do estado atual. À medida que os comportamentos e os valores reais se diferenciam claramente da imagem do self ideal, instala-se uma espécie de barreira em direção ao crescimento, que pode ser entendida como a própria busca pelo fim da existência (Fadiman & Frager, 1986).
Davidoff (2001) assegura que a angústia, não diferente da angústia pelo medo da morte, se instala quando algo impacta a compreensão de si, da sua vida (capacidade para o crescimento, finalidades, conceitos, valores, percepções) e do autodiscernimento. Assim, a busca pelo prazer do hedonista e o medo da morte podem estar relacionados com a percepção de si ( self real) e da própria vida em desarmonia, incongruência, com o self ideal em torno do prazer (sem possibilidades), sendo a morte a interrupção do processo de crescimento almejado.
Na teoria de Rogers, a congruência diz respeito a exatidão, a tomada de consciência e a experiência da comunicação. Isto ocorre quando o que a pessoa está expressando, o que está vivenciando e o que está percebendo, estão em comum sintonia, ou seja, tanto as observações próprias, quanto as de uma pessoa externa, seriam semelhantes. A incongruência, por sua vez, ocorre quando o inverso acontece, havendo diferenças entre os três aspectos. Quando a incongruência está ligada a experiência e a tomada de consciência, dá-se o nome de repressão, em que a pessoa não tem consciência do que está fazendo. Quando a incongruência é entre a comunicação e a tomada de consciência, a pessoa não expressa fielmente o que está pensando, experienciando ou sentindo. A incongruência pode ser experienciada através da ansiedade, tensão e até da confusão interna (Fadiman & Frager, 1986).
Davidoff (2001) expõe que, para que se viva bem, é imprescindível ter consciência do self e da autorrealização e, dotado desta consciência e encontrando-se em pleno funcionamento, conta-se com autoconceito realista (congruente), aberto para novas experiências, considerando amplas escolhas, consciente do próprio mundo (mundo experiencial) e em constante crescimento e/ou mudança. Ou seja, para que a pessoa sustente sua saúde mental, é imprescindível que mantenha uma relação congruente e estreita entre o self real e o self ideal, do contrário, a angústia é promovida, juntamente com o desejo de morte, como supracitado.
Ao conceber a ideia acima, Rogers considera que, para que o self seja mantido e aprimorado, é indispensável a motivação da tendência inata que direciona à autorrealização. Este estímulo, que Rogers chamou de tendência atualizante, abarca as formas mais complexas de atuação psicológicas e fisiológicas (como a maturação), desenvolvendo as capacidades e potencialidades. O objetivo principal desta tendência está na atualização do self para, conforme denominou Rogers, o pleno funcionamento de uma pessoa (Schultz & Schultz, 2008).
O nível de saúde emocional e adaptação psicológica é fruto da atuação da congruência entre as experiências vivenciadas e o autoconceito. Indivíduos psicologicamente saudáveis conseguem perceber as pessoas, a si e os eventos no mundo experiencial de forma próxima ao que realmente são. Com isso, tornam-se abertas para novas experiências, pois não há ameaças aos autoconceitos e não existe necessidade em deformar as percepções, pelo fato de terem tido consideração positiva incondicional e não precisarem internalizar condições de merecimento, sentindo-se merecedoras em todas as situações, utilizando as experiências para desenvolver e realizar as facetas do self, caminhando para a vida plena, conforme denominou Rogers (Schultz & Schultz, 2008).
Entretanto, o processo de avaliação organísmica proposto por Rogers, no que tange o processo governante da vida, agirá avaliando nossas experiências, a fim de analisar se exercem função adequada em benefício da tendência atualizante. Destarte, as experiências percebidas como causadoras dessa atualização são vistas como desejáveis e boas, de caráter positivo, enquanto as experiências que promovem obstáculos à tendência são entendidas como indesejáveis, com valor negativo. Assim, essas percepções agem com influência sobre os comportamentos, pois, tender-se-ão a repetição de vivências desejáveis e evitação das indesejáveis (Schultz & Schultz, 2008).
Ao se falar sobre as relações do paciente com pares e as adaptações ao meio, segundo Davidoff (2001), mesmo que Rogers tivesse a hipótese de que o ambiente e o fator hereditário modelassem a personalidade humana, ele restringiu seu foco de estudo para os limites autoimpostos que, via de regra, podem ser ampliados.
Diante dessa singularidade, pelo olhar de Rogers, a capacidade de aperfeiçoar e/ou mudar a personalidade é produto advindo do interior do sujeito. Acredita-se, ainda, que os humanos são seres racionais governados pela percepção consciente sobre eles próprios e o seu mundo experienciado, afirmando que as emoções e sentimentos presentes têm forte impacto na personalidade. Por conta da valorização do tempo presente e da consciência, versa-se que a personalidade deve ser compreendida pelo viés do próprio ponto de vista, das experiências subjetivas. Partindo desta análise, Rogers observou que o modo concebido conscientemente pelas pessoas, nem sempre correspondiam a realidade objetiva dos construtos analisados (Schultz & Schultz, 2008).
A explanação de Vespieren (1998) corrobora com as concepções de singularidades da ACP ao versar que, quando os pacientes pedem a morte induzida, deve-se considerar os aspectos das dificuldades de relação do paciente com a família/amigos/cuidadores, a adaptação do controle dos sintomas e as perturbações psicológicas, ou seja, o sofrimento devido a perdas, depressão, ansiedade, as desordens mentais de origens orgânicas e os problemas de personalidade, enquanto sentido da vida e do sofrimento. Assim, ao falar sobre as implicações dos pedidos de morte, há uma dificuldade dupla, pois, cada sujeito é único e cada pedido é particular (Vespieren, 1998).
Para Polaino-Lorente (1981) ainda que o paciente solicite a eutanásia, o pedido não deve ser aceito, pois, na maioria das vezes, é originado em uma decisão passageira, traduzida em um grito de desespero e demonstra uma solicitação perturbada por cuidados médicos e afeição familiar.
Ao referir a respeito dos aspectos envolvidos na solicitação da eutanásia e no caráter possivelmente passageiro, cabe falarmos sobre dois conceitos da ACP. O primeiro, a chamada expansão, que está ligada à tendência atualizante, em que o sujeito valoriza sua tendência atualizante e expande. Segundo Rogers (1987) citado por Melo, Lima e Moreira (2015), abranger uma experiência vai de encontro com os mecanismos psicológicos mantedores da organização do eu, dificultando que a busca pelo novo chegue à consciência, sendo necessária a ampliação e flexibilização das percepções do indivíduo. O segundo, a manutenção, que Feist, Feist e Roberts (2015) referem ocorrer quando há uma investida na natureza conservadora, compreendida pelo desejo de se manter no confortável autoconceito atual.
Vespieren (1998) salienta que as várias formas utilizadas pelo paciente para se expressar podem ter implicações semelhantes e testemunhar um sofrimento real. Esse sofrimento demanda disposição do ambiente social para acalmar ou minimizar. A altíssima vulnerabilidade às atitudes dos outros está estritamente implicada no sofrimento e na mudança entre desejo de morte para o pedido da morte, que pode ser advinda dos comportamentos do meio social. Acrescenta que as solicitações de eutanásia surgem ou desaparecem de acordo com a atitude de terceiros e as posições da mesma sociedade (Vespieren, 1998).
Sobre as influências do meio, para Rogers, cada pessoa tem o seu campo de experiência, em que há sensações, eventos, percepções e impactos que o indivíduo não se dá conta, mas poderia, caso focasse a atenção no estímulo. Este campo, também conhecido como campo fenomenal, é privativo do sujeito, pode expressar, ou não, a realidade objetiva e é limitado por restrições biológicas e psicológicas, fazendo com que a pessoa volte a atenção para perigos imediatos e experiências seguras, impossibilitando que empreenda-se todos os estímulos disponíveis (Fadiman & Frager, 1986).
Quando se fala sobre a importância de o meio agir e da vulnerabilidade ao outro, alguns aspectos podem ser ponderados, como referem Fadiman e Frager (1986) que, à medida que a criança começa a tomar consciência do self, passa a ter necessidade de consideração positiva ou de amor. Na teoria Rogeriana, a consideração positiva incondicional se dá através dos afetos destinados à criança independentemente de seu comportamento, contribuindo para a construção da personalidade, investimento na tendência inata à atualização e desenvolvimento da autoimagem, que se estabelecerão mediante as aprovações/desaprovações por parte dos pais. A consideração positiva tem caráter recíproco, ou seja, quando a pessoa percebe que está satisfazendo a necessidade de consideração positiva de outra pessoa, acaba experienciando satisfação, tendo caráter recompensador. A importância em satisfazer o outro, principalmente na infância, faz com que as pessoas se tornem sensíveis aos comportamentos dos outros e, ao perceber o retorno recebido, ocorre o aperfeiçoamento da autoimagem, internalizando a atitude de outras pessoas (Schultz & Schultz, 2008).
Somado a isso, caso o paciente ainda não tenha passado por significativas mudanças e crescimento (proporcionadas pelo processo psicoterápico), provavelmente não conseguirá expressar os sentimentos no presente, nem simbolizá-los de forma real. Assim, se baseará em um locus externo de avaliação para os sentimentos, limitando-se a novas descobertas sobre si (Feist; Feist & Roberts, 2015).
Vespieren (1998) levanta o seguinte questionamento: a morte é o objeto da petição ou é o desejo de não viver nessas condições? Diz que a experiência demonstra que a maior parte dos pedidos de eutanásia, contendo muita dor ou distúrbios graves, não significam propriamente um desejo de morte, mas uma dificuldade em suportar condições de vida muito dolorosas e, quando o sofrimento é reduzido, a solicitação some.
O autor completa dizendo que, independentemente dos medos se fazerem presentes, inúmeras pessoas alegam que não aceitarão as perdas ocorridas pela doença ou envelhecimento, preferindo manter a autoestima (fala comumente utilizada para conservar a dignidade) e a imagem agradável de si. Assim, chegam a contactarem os médicos, a priori, a fim de conseguirem a promessa de que, chegada a hora, agirão. Outras pessoas declaram suas convicções abertamente e se entregam aos mortos assim que começam a perceber que as alterações no psicológico e/ou no corpo foram iniciadas (Vespieren, 1998).
As postulações acima, dão a ideia de que há em vigência uma ameaça a autoimagem e, Davidoff (2001) refere que, na visão de Rogers, as pessoas buscam estabelecer as percepções de suas vivências conforme sua autoimagem, mostrando-se abertas para eventos que estejam de acordo com o autoconceito, o self. Schultz e Schultz (2008) nos exemplificam este aspecto ao versar que o self, em condições ideais, trata-se de um padrão consistente, um todo organizado em busca de coerência. Assim, uma pessoa que, incomodada por ter pensamentos agressivos, prefere ignora-los, não os expressando e, caso agisse com agressividade, assumiria a incoerência da ação baseada no seu autoconceito, pois tem a percepção de que comportamentos agressivos deveriam estar ausentes.
Nesta perspectiva, a pessoa que solicita a morte na acentuada situação de crise, estaria buscando ignorar a vivência real, pois, em sua autoimagem, não concebia a ideia de passar por essa situação. Do mesmo modo, busca a antecipação da morte para que a idade ou a doença não afete as características inclusas no self e destoe dele.
Apesar da dor e dos demais distúrbios, há outro aspecto que acarreta o desejo da morte, a solidão. Embora seja uma realidade humanamente experienciada de forma muito distinta, os seus efeitos podem ser parecidos. A morte prematura pode-se chegar a ser preferível, se comparada a uma vida solitária em que se reina o sentimento de desamparo e desamor por parte dos outros. Assim, não é propriamente o desejo da morte, mas o fim da situação de solidão tida como intolerável. Quando há abandono por parte de familiares, um cuidador é solicitado para o acompanhamento e, se um relacionamento verdadeiro é retomado, é provável que o paciente não demonstre mais o desejo pela morte (Vespieren, 1998).
Ao referir sobre a solidão e retomada de uma relação, percebe-se o papel da troca de afeto. Com isso, atitudes ou comportamentos que vão contra alguma característica do self são tidas como condições de valor, que são empecilhos básicos para a exatidão entre a tomada de consciência realista e a percepção. Diante dessas condições, há filtros seletivos que asseguram o desejo interminável de ter amor por parte dos pares e acumula-se determinadas atitudes/condições que, para que haja o sentimento de dignidade, precisam ser cumpridas. Para que as condições de valor sejam mantidas, deve-se negar determinados aspectos de si, do self, acarretando em discrepância para sustentar a falsa autoimagem. Essas situações alimentam a si mesmas e, a cada experiência de incongruência experimentada entre a realidade e o self, aumenta-se a vulnerabilidade, criando novas atitudes de incongruência, restrição de experiências e aumento de defesas. Algumas vezes, as defesas não são eficazes e a pessoa se dá conta das incompatibilidades entre as crenças e os comportamentos, podendo resultar em retraimento, pânico, ansiedade, dentre outros (Fadiman & Frager, 1986).
A respeito das defesas, Feis, Feist e Roberts (2015) referem que as principais são distorções (a mais utilizada, interpretando de forma equivocada uma experiência para se encaixar no self) e negações (recusa em perceber uma experiência na consciência). Estas são apropriadas para o impedimento de reconhecimento de discrepância por parte de pessoas organizadas, mantendo a percepção das experiências organísmicas condizentes com o autoconceito, evitando ameaças e ansiedades. Porém, quando a incongruência entre o self percebido e a experiência organísmica se dá de forma abrupta ou é extremamente evidente, sem tempo hábil para negar, o comportamento passa a desorganizar-se, gradualmente ou repentinamente (Feist; Feist & Roberts, 2015).
Feis, Feist e Roberts (2015) asseveram que, durante a desorganização, as pessoas tendem a agir de acordo com o autoconceito abalado ou com a experiência organísmica, podendo o comportamento parecer bizarro e confuso. Essa compreensão explicaria a decisão de abreviar a própria vida, sendo a eutanásia o meio para colocar um final na existência.
A carência corporal e/ou física faz com que a pessoa perca a independência, a autonomia cotidiana e faz com que apele aos outros, não só a assistência médica, mas também o sustento diário, causando grande sofrimento, especialmente em sociedade que apreciam a autonomia pessoal. A dependência coage o paciente a ser direcionado a uma instituição social ou de saúde, obrigando-o a renunciar sua forma singular de viver (em sua residência), perdendo os papéis sociais e familiares que desenvolvia. Essa limitação é notadamente dolorosa nas sociedades que articulam utilidade social à identidade pessoal, fazendo com que o sujeito, muitas vezes, sinta-se inútil, abrindo mão da noção de sua identidade e esquecendo do valor da própria vida (Vespieren, 1998).
Diante disso, Rogers postulou sobre as condições de merecimento, que surgem em decorrência da sequência do desenvolvimento da consideração positiva a caminho da autoconsideração positiva, pois padrões externos de comportamentos passam a ser internalizados, podendo atuar como imperativo de constante avaliação e abstenção de comportamentos subjetivos, dificultando o crescimento/desenvolvimento genuíno do self. A condição de merecimento diz respeito ao pensamento que se é merecedor de aceitação, aprovação, apenas quando se faz algo desejável e há privação de comportamentos tidos como desaprovados pelos outros, assim ocorre a aceitação positiva condicional (Schultz & Schultz, 2008).
A consideração positiva condicional, de que pessoa não se sente digna dadas as circunstâncias em que se encontra, pode ser novamente notada quando assinala-se que, em sociedades ocidentais, é mais aceitável dar do que receber. Mesmo que esse costume de solidariedade tenha sido parcialmente destruído entre as gerações, é natural dar coisas aos filhos e, para os mais velhos, é doloroso receber coisas e depender dos filhos/netos. Pode-se produzir uma grave ferida narcísica acarretando em desvalorização pessoal, trazendo sentimento de culpa, um sofrimento com pensamento de ser uma carga para quem cuida, compreendendo a situação como injusta. Além disso, contribuir para o desejo de morte com a finalidade de libertar o cuidador, demonstra também a vulnerabilidade dos pacientes frente às exigências sociais e familiares (Vespieren, 1998).
Schultz e Schultz (2008) discorrem que, com o passar do tempo e das experiências, a consideração positiva passa a ter maior participação nas condições internas do indivíduo, em detrimento dos outros, sendo este aspecto conceituado por Rogers de autoconsideração positiva. Porém, assim como a consideração positiva, ela é recíproca, quando se recebe consideração positiva do outro e desenvolve-se autoconsideração positiva, oferece-se consideração positiva para o outro.
Com relação ao outro, Vespieren (1998) destaca um diferente fator importantíssimo, que é a mudança na imagem corporal apresentada aos olhos dos outros, em decorrência das inúmeras modalidades de alteração/deformação (feridas no rosto, queda de cabelo, dentre outras). Os pacientes percebem que não mais correspondem à imagem ideal de uma pessoa humana, como requerem as sociedades. Como já dito, afeta a autonomia na realização dos desejos, independência no financeiro/material, utilidade social e familiar e uma imagem corporal que traz desconforto. Os acometidos reconhecem que sua situação é descrita, frequentemente, como perda de dignidade, costumando duvidarem de si e do valor para si, por ainda estarem vivos. Vespieren (1998) faz a indagação de como querer viver quando se é considerado um parasita ou um desperdício de humanidade e esse julgamento social é internalizado? Em sua opinião, diz que esse aspecto implica no desejo de morte em situações semelhantes.
Ao trazer à tona a questão das mudanças com impacto do julgamento social, cabe expor o que Rogers, ao construir a teoria, elencou como o impacto do mundo experiencial (a situação ou o ambiente que agimos cotidianamente), fornecendo referências que influenciam o crescimento. No mundo experiencial, estamos diante a diversas estimulações, algumas banais, outras importantes, umas reforçadoras, outras ameaçadoras e a realidade do ambiente dependerá das percepções que se tem dele, que poderá não ser condizente com a realidade, propriamente dita. Ou seja, uma pessoa poderá reagir a determinada experiência/fato diferentemente de um familiar ou amigo, pois a percepção é subjetiva e se modifica com as circunstâncias e o tempo (Schultz & Schultz, 2008).
Vespieren (1998) discorre que o julgamento que altera a pessoa dependerá da atitude e, principalmente, dos olhos dos outros. A atitude do outro poderá testemunhar uma estima e amor mantidos, apesar das alterações sofridas ou confirmar e prolongar o início da perda de valor. O paciente sustentado pelo olhar de alguém que o estimula a viver, pode comprometer-se a prosseguir a dolorosa jornada a bordo do seu sofrimento, que poderá leva-lo a construir um espaço novo e continuar sua jornada na vida.
A ACP compreenderá em menor grau a forma de se comportar do outro perante ao paciente, mas, especificamente, a forma que este compreende a situação e a internaliza. Diante disso, pode-se realizar uma interpretação distorcida de determinadas experiências, indo de encontro com o verdadeiro self, propiciando em alienação. Com isso, a pessoa passa a analisar as experiências a fim de rejeitar ou aceita-las, com base no substrato disponível para ocasionar consideração positiva por parte do outro, e não na forma que contribuiria para a tendência atualizante. Desta forma ocorre a incongruência com o autoconceito, sendo essas experiências ameaçadoras e provocadoras de ansiedade. Assim, para que o autoconceito seja mantido, deve-se negar o comportamento incongruente, defendendo-se da ansiedade trazida pela experiência de ameaçadora (Schultz & Schultz, 2008).
Instalada a alienação, mediante a interpretação da situação e do que lhe é dito contrário ao self, demonstrando incongruência e rejeição à condição facilitadora do desenvolvimento, a tendência atualizante, indo na via de satisfazer a aceitação positiva do outro, entra o conceito de manutenção, em que o paciente não estará aberto para perceber e experimentar novas condições, como dito, construir novos espaços. A manutenção, por sua vez, seria a tendência a escapar da mudança e continuar a busca pelo status atual. Deste modo, ocorrem as distorções das experiências que não se encaixam no autoconceito vigente, a luta contra novas ideias, passando a considerar dolorosa a mudança e assustador o crescimento (Feist; Feist & Roberts, 2015).
O crescimento psicológico, para Rogers, acontecerá apenas quando a consideração positiva incondicional, empatia e congruência estiverem presentes. Por este motivo, Rogers elencou-as como condições suficientes e necessárias para que a pessoa torne-se autoatualizada e plenamente funcional (Feist; Feist & Roberts, 2015).
Embora Rogers tenha indicado que há um impulso inerente, em cada pessoa, que a direciona a ser capaz e competente, conforme o aspecto biológico permite, esse impulso em direção à saúde, a manter-se saudável, não é uma força avassaladora que passa por cima dos obstáculos experienciados ao longo da vida, pelo contrário, ele é facilmente distorcido, reprimido, embotado. Rogers compreendia essa força como motivadora dominante, mas que age em pessoas que estão agindo de modo livre (como a vida plena), não em pessoas presas a crenças ou eventos passados que sustentam a incongruência. Com isso, compreende-se que a percepção dos pacientes terminais, diante das vicissitudes da vida, é produto de distorção do impulso inerente ao ser humano, tendo em vista que os pacientes não se encontram livres (Fadiman & Frager, 1986).
Conclusões
Diante das análises singulares discorridas mediante a ACP, ficou evidente a importância de se valorizar as questões que perpassam os aspectos psicológicos dos pacientes terminais, para além da temática física e fisiológica. A relevância do acompanhamento psicoterápico nessa etapa ̶ a fim de facilitar o ajuste das incongruências, valorizar a tendência inata ao crescimento, alcançar a expansão e o desenvolvimento do self, minimizando o sofrimento ̶ foi profundamente manifestada e, especificamente, com início prévio à consideração (por parte da equipe profissional) de um possível pedido de eutanásia. Pode-se, ainda, estabelecer o acompanhamento psicológico contínuo (não apenas um parecer/laudo) como requisito para a solicitação oficial de eutanásia ̶ em estados que a prática seja legalizada ̶ , durante o processo de morte.
A partir da revisão teórica realizada e baseada na visão de Carl Rogers, entendeu-se que o paciente terminal, em sua experiência atual, apreende que seu self real encontra-se impossibilitado de alcançar o self ideal e, tomado pela angústia decorrente da incongruência e ameaças ao autoconceito, evidenciando a condição de valor fortalecida pela exigência social/cultural de produção e a falta de compreensão de novas possibilidades de vida, identifica o fim da existência como a melhor solução.
Diante disso e da postulação de Feist, Feist e Roberts (2015), que a tendência atualizante busca satisfazer necessidades sentidas e aceitar o self próprio, poder-se-ia dizer que esta tendência age como motivadora para a decisão em favor da morte?
Referências
Angerami, V. A. (2010). Pacientes Terminais: Um Breve Esboço. In: TRUCHARTE, F. A. R.; KNIJNIK, R. B.; SEBASTIANI, R. W.; ANGERAMI, V. A. (Orgs.). (2a ed.). Psicologia Hospitalar: Teoria e Prática. (p.p. 91-106). São Paulo: Cengage Learning.
Campos, L. F. L. (2008). Métodos em Técnicas de Pesquisa em Psicologia. (4a ed.). Campinas: Editora Alínea.
Castro, M. P. R. et al. (2016). Eutanásia e suicídio assistido em países ocidentais: revisão sistemática. Revista Bioética, 2(24), p.p. 355-367. Recuperado em 07 outubro, 2018: http://www.scielo.br/pdf/
Cozby, P. C. (2014). Métodos de Pesquisa em Ciência do Comportamento. (1a ed.). São Paulo: Atlas.
Davidoof, L. L. (2001). Personalidade: Teorias e Testes. In: DAVIDOOF, L. L. Introdução à Psicologia. (3a ed.). (p.p. 503-538). São Paulo: Pearson Makron Books.
Deslauriers, J-P.; Kérisit, M. (2014). O delineamento de pesquisa qualitativa. In: POUPART, J. et al. (Orgs.). A PESQUISA QUALITATIVA: Enfoques epistemológicos e metodológicos. (4a ed.). (p. 127-153). Petrópolis: Editora Vozes.
Emanuel, E. (2017). Euthanasia and physician-assisted suicide: focus on the data. The Medical Journal of Austrália, Austrália, 8(206), p.p. 1-3. Recuperado em 07 de outubro, 2019: https://bit.ly/2oOW7PB
Espínola, S. R. (2000). Actitud hacia la eutanasia, contacto con enfermos terminales y personalidad. Interdisciplinaria, 2(17), p.p. 119-136. Recuperado em 07 de outubro, 2019: https://www.redalyc.org/pdf/180/18011322003.pdf
Fadiman, J; Frager, R. (1986). Carl Rogers e a perspectiva Centrada no Cliente. In: Fadiman, J; Frager, R. (p.p. 221-258). Teorias da Personalidade. São Paulo: Harbra.
Feist, J. Feist, G. J.; Roberts, T-A. (2015). Teorias da Personalidade. (8a ed.). Porto Alegre: AMGH.
Felix, Z. C. et al. (2013). Eutanásia, distanásia e ortotanásia: revisão integrativa da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, 9(18), p.p. 2733-2746. Recuperado em 24 de maio, 2018: https://www.scielosp.org/pdf/csc/2013.v18n9/2733-2746/pt
Freitas, N. A. D. (2012). Medicina e cuidados paliativos: O conceito de “boa morte” na contemporaneidade. 2012. 65f. Dissertação (Mestrado em Medicina) - Universidade da Beira Interior, Ciências da Saúde, Covilhã. Recuperado em 18 de março, 2018: https://ubibliorum.ubi.pt/
Gil, A. C. (2014). Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. (6a ed.). São Paulo: Editora Atlas.
Kovács, M. J. (2014). A caminho da morte com dignidade no século XXI. Revista Bioética, 1(22), p.p. 94-104. Recuperado em 01 de setembro, 2018: http://www.scielo.br/
Kovács, M. J. (2005). Educação para a morte. Psicologia Ciência e Profissão, 3(25), p.p. 484-497.
Kubler-Ross, E. (2008). Sobre a morte e o morrer: o que os doentes terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos próprios parentes. (9a ed.). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes.
Marengo, M. O.; Flávio, D. A.; Silva, R. H. A. (2009). Terminalidade de vida: bioética e humanização em saúde. Medicina, São Paulo, 3(42), p.p. 350-357. Recuperado em 22 de agosto, 2018: http://www.revistas.usp.br/
Melo, A. K. S.; Lima, R. P.; Moreira, V. (2015). Construção da noção de experiência ao longo do pensamento de Carl Rogers. Revista do NUFEN, 1(7), p.p. 4-31. Recuperado em 12 de outubro, 2019: http://pepsic.bvsalud.org/
Morais, I. M. (2010). Autonomia pessoal e morte. Revista Bioética, Brasília, 2(18), p.p. 289-309. Recuperado em 31 de março, 2018: http://www.redalyc.org/
Pereira, S. A.; Pinheiro, A. C. D. (2008). Eutanásia. Revista de Direito Público, Londrina, 3(3), p.p. 180-196.
Pessini, L. (2010). Lidando com pedidos de eutanásia: a inserção do filtro paliativo. Revista Bioética, 3(18), p.p. 549-560. Recuperado em 27 de maio, 2018: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/
Pessini, L. (2004). Questões éticas-chave no debate hodierno sobre a distanásia. In: Garrafa, V.; Pessini, L. (Orgs.). (p.p. 389-408). Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Edições Loyola.
Pessini, L.; Barchifontaine, C. P. (2002). Problemas atuais de Bioética. (6a ed.). São Paulo: Edições Loyola.
Pessini, L.; Siqueira, J. E. (2019). Reflexões sobre cuidados a pacientes críticos em final de vida. Revista Bioética, Brasília, 1(27), p.p. 29-37. Recuperado em 13 de outubro, 2019: http://www.scielo.br/
Polaino-Lorente, A. (1981). Ansiedad ante la muerte y actitudes ante la eutanasia: revision critica de um estudio experimental. [s. l.], (8), p.p. 271-282. Recuperado em 06 de outubro, 2019: https://dadun.unav.edu/bitstream/
Rogers, C. R. (2009). O que sabemos da psicoterapia – objetiva e subjetivamente. In: ROGERS, C. R. Tornar-se pessoa. (6a ed.). (p.p. 70-81). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes.
Santos, D. A. et al. (2014). Reflexões bioéticas sobre a eutanásia a partir de caso paradigmático. Revista bioética, 2(22), p.p. 367-372. Recuperado em 23 de agosto, 2018: http://www.scielo.br/pdf/bioet/v22n2/19.pdf
Santos, S. C. P. (2011). Eutanásia e suicídio assistido: o direito e a liberdade de escolha. 2011. 188 f. Dissertação (Mestrado em História Contemporânea e Estudos Internacionais) –Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, [s.l.]. Recuperado em 01 de setembro, 2018: https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/19198
Schramm, F. R. (2002). Morte e finitude em nossa sociedade: implicações no ensino dos cuidados paliativos. Revista Brasileira de Cancerologia, 1(48), p.p. 17-21. Recuperado em 23 de agosto, 2018: http://www1.inca.gov.br/
Schultz, D. P.; Schultz, S. E. (2008). A Abordagem Humanista: Carl Rogers. In: Schultz, D. P.; Schultz, S. E. Teorias da personalidade. (1a ed.). (p.p. 313-333). São Paulo: Cengage Learning.
Silva, S. G. (2013.) Eutanásia, Finitude e Biopolítica. Revista Mal-estar e Subjetividade, Fortaleza, 1-2(13), p.p. 331-368.
Siqueira, J. E. (2005). Reflexões éticas sobre o cuidar na terminalidades da vida. Bioética, 2(13), p.p. 37-50. Recuperado em 22 de agosto, 2018: http://revistabioetica.cfm.org.br/
Siqueira-Batista, R.; Schramm, F. R. (2005). Conversações sobre a “boa morte”: o debate bioético acerca da eutanásia. Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro, 1(21), p.p. 111-119. Recuperado em 24 de maio, 2018: http://www.scielo.br/
Vespieren, P. (1998). La petición de eutanásia y sus implicâncias. Mensaje, 28(467), p.p. 28/92-32/96. Recuperado em 05 de outubro, 2019: http://repositorio.uahurtado.cl/
|