REVISTA DE PSICOLOGIA -GEPU-
ISSN 2145-6569
IBSN 2145-6569-0-7

   
 
  Da Busca Pela Verdade ao Fomento da Intolerância: Análise Das Implicações do “Cérebro Homossexual” na Produção de Subjetividades

Da Busca Pela Verdade ao Fomento da Intolerância: Análise Das Implicações do “Cérebro Homossexual” na Produção de Subjetividades

From the Search for the Truth to the Building of Intolerance: An Analysis of the Implications of “Homosexual Brain” in the Production of Subjectivity 

 Carlos Eduardo Nórte
 

Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Correo electronico: cadulsn@gmail.com

 

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
 

Doutor em Psicologia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Correo electronico: ppbicalho@ufrj.br

 

 

Endereço para correspondência:
 

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia - Av. Pasteur, 250 – Pavilhão Nilton Campos. Campus Praia Vermelha. CEP: 22290-240 - Rio de Janeiro - RJ – Brasil

 


Recibido: 04 de Marzo de 2010
Aprobado: 07 de Mayo de 2010

Referencia Recomendada: Nórte, C., & Bicalho, P. (2010). Da busca pela verdade ao fomento da Intolerância: análise das implicações do “cérebro homossexual” na produção de subjetividades. Revista de Psicología GEPU, 1 (3), 48 - 64.

 

Resumo: O artigo coloca em análise o discurso neurocientífico relacionado à orientação sexual, e o trabalho do neurocientista ao produzir pesquisas que buscam através de uma verdade dita como científica reduzir a sexualidade humana a algo natural. Para isso, foi realizada uma busca bibliográfica no portal ISI Web Knowledge a respeito de pesquisas relacionadas com a temática do cérebro homossexual. Foram encontrados 122 artigos e os resultados mostram que o tema da homossexualidade continua a ser um tópico instigante e que continua a ser estudado nas pesquisas neurocientíficas. Ao entendermos que discursos produzem subjetividades ao influenciar formas de pensar, o presente artigo buscou colocar em análise os efeitos dos dispositivos neurocientíficos que produzem a idéia de um “cérebro homossexual”, e a produção de um conceito de normalidade que se faz, que em contraste com o “anormal”, o torna errôneo, patologizável e passível de cura.

Palavras Chave:
Homofobia, Neurociências, Produção de Subjetividade.


Abstract: This paper put in analyse the neurocientific speech associated to sexual orientation, and the work of the neuroscientist when produce researches that through a scientifc truth as such reduce the human sexuality to a natural thing. For this, we performed a literature search in ISI Web Knowledge website, about researches related to the topic of homosexual brain. Were founded 122 articles and the results shows that the issue of homosexuality theme which continues to be studied in neurocientific researches. To understand that discourse produces subjectivities to influence ways of thinking, this paper as an analysis of the neurocientific effects  devices that produce the idea of a homosexual brain, and the production of a concept of normality that is, that in contrast to the "abnormal", , it gets pathologic and open the possibility of the cure.

Key Words: Homophobia, Neurosciences, Production of Subjectivity.


Neurociências: Desvendando o Sistema Nervoso

Com o advento das tecnologias e a tentativa de entender o que acontece no cérebro humano surgem as neurociências (Bear et alli, 2002). Com um objeto de estudo bem delimitado, tal área do conhecimento visa através de um olhar interdisciplinar produzir conhecimento a respeito da estrutura, organização e funcionamento do cérebro. Reúne, assim, disciplinas biológicas que estudam o sistema nervoso, o normal e o patológico, especialmente a anatomia e a fisiologia do cérebro, transversalizando-as com a teoria da informação, semiótica e lingüística, e demais disciplinas que visam explicar o comportamento, o processo de aprendizagem e cognição humana. Tal visão sobre as especificidades do cérebro e a importância de estudá-lo vem sendo descritas desde o século IX a.C. com Hipócrates, em Acerca das Doenças Sagradas:

O homem deve saber que de nenhum outro lugar, mas do encéfalo, vem a alegria, o prazer, o riso e a diversão, o ressentimento e a lamentação. E por isto, de uma maneira especial, adquirimos sabedoria e conhecimento, e enxergamos e ouvimos e sabemos o que é justo e injusto, o que é bom e o que é ruim, o que é doce e o que é amargo... E pelo mesmo órgão tornamo-nos loucos e delirantes, e medos e terrores nos assombram...Todas estas coisas suportamos do encéfalo quando não está sadio...Neste sentido sou da opinião de que o encéfalo exerce o maior poder sobre o homem (Bear et alli, 2002, p.4).

Tal visão se mantém atual e é reconhecida por filósofos e pensadores como materialismo ou fisicalismo. Sua inspiração é a perspectiva de que as novas descobertas no campo da neurociência permitir-nos-ão, mais cedo ou mais tarde, concluir que a mente e a subjetividade se restringem meramente a algum tipo de manifestação da atividade do cérebro. Tais concepções pressupõem que:

Nossas angústias, desejos e intenções seriam apenas um produto do cérebro e supor que tenham existência autônoma não passaria de uma ilusão. Poderíamos também interferir nesses processos químicos usando drogas e, nesse caso, depressões ou melancolias deixariam de ser crises existenciais ou profundos conflitos de valores para se tornarem apenas desequilíbrios orgânicos passageiros, que poderiam ser curados da mesma maneira que nos estabelecemos de uma diarréia tomando alguns comprimidos (Teixeira, 2008, p.65).


Partindo do princípio de que a neurociência é capaz de elucidar o que fazemos, porque sentimos e como pensamos, podendo assim ter o poder de dizer a verdade sobre a subjetividade, fazendo-nos crer que o neurocientista é visto como aquele que tem a legitimidade e o poder de dizer algo sobre o outro.

De acordo com Michel Foucault (1999) os discursos não representam meramente signos lingüísticos, visto que remetem a práticas sociais, questões ético-políticas e científicas que circulam em uma sociedade; de modo que práticas discursivas designam objetos, os transformam no interior de disputas de interesses. Desse modo, é possível afirmar que determinados discursos ao entrarem nas relações de produção de verdade - e que são construídas a partir de relações de poder -, produzem efeitos no mundo e criam novos modos de ser e viver. O biopoder, deste modo, é a tecnologia centrada na administração dos corpos e na gestão calculista da vida que institui, através de discursos e micropolíticas, modos de existir.

Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas principais; que não são antiéticas e constituem, ao contrário, dois pólos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma serie de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população (Foucault, 1988, p. 151-152).

E continua:

A velha potência de morte em que simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida.” (Foucault, 1988, p.152). Ao dizermos que “o homem é um ser social” ou que o indivíduo vive em sociedade e é por ela influenciado, podemos ser capturados pela tradição da Filosofia Cartesiana que definiu o sujeito como “coisa pensante” que habita um corpo, estando separado da exterioridade. Como destaca Ferreira Neto (2004) esta é “uma perspectiva que tem por solo a oposição entre interno e externo, no qual a subjetividade é entendida como interioridade.” (p. 113). Ou seja, desejamos abordar a questão da subjetividade não por uma relação causal em que a subjetividade é influenciada pela sociedade e nem que a sociedade é constituída pelo agrupamento de várias subjetividades individuais, mas sim com a concepção que propõe:

A subjetividade entendida como emergência histórica de processos, não determinados pelo social, mas em conexão com processos sociais, culturais, econômicos, tecnológicos, midiáticos, ecológicos, urbanos, que participam de sua constituição e de seu funcionamento” (Ferreira Neto, 2004, p.114). A problemática da subjetividade será aqui abordada a partir da concepção de Deleuze e Guattari que tem “como característica distintiva sua indissociabilidade da idéia de produção. (...) como produção de formas de viver, de sentir, de conhecer” (Kastrup, 2000, p.20). A produção de subjetividade, assim como da objetividade, provém de um campo de forças ou fluxos heterogêneos, sempre em movimento, que se agenciam produzindo sujeitos e objetos em um contínuo processo de produção. Este plano das forças e seus agenciamentos são a expressão do que Deleuze denominou rizoma, que pode se definido como “um campo coletivo de forças/fluxos dispersos, múltiplos e heterogêneos. (...)Todas as formas existentes e visíveis resultam de um agenciamento destes fluxos heterogêneos” (Kastrup, 2000, p.21). Desta forma, pensaremos a subjetividade como processo, em incessante produção por todo corpo social a partir de elementos heterogêneos, e não como estrutura identitária ou interioridade. Assim, tomaremos a temática da sexualidade, a partir do discurso neurocientífico, como um dos vetores passíveis de se cartografar o processo de produção de subjetividade contemporânea, entendendo que tal produção não se inicia, termina ou mesmo se determina a partir deste ponto.

Guattari e Rolnik (1999) propõem que as forças sociais que administram o capitalismo hoje entenderam que a produção de subjetividade talvez seja mais importante que qualquer outro tipo de produção. O capitalismo atual não atua apenas no campo da economia política, mas principalmente no campo da economia subjetiva, pois a idéia de produção de subjetividades está além da circunscrição do alvo da luta à reapropriação dos meios de produção ou dos meios de expressão política. Os autores denominam “produção de subjetividade capitalística”, a produção em larga escala de modos de pensar, sentir e atuar no mundo em escala mundial. São formas de expressão dominantes que produzem sujeitos serializados, normatizados, modelizados de acordo com os padrões dominantes, opondo a estas máquinas produtoras de subjetividade  “modos de subjetivação singulares” ou “processos de singularização” que são “uma maneira de recusar todos esses modos de codificação preestabelecidos, recusá-los para construir modos de sensibilidade, modos de criatividades quem produzam uma subjetividade singular” (p.22). Entendemos então que nossos sentimentos, pensamentos e comportamentos não são produtos de uma interioridade psíquica e nem existem no mundo em si; eles são fundamentalmente produzidos a partir de práticas historicamente localizáveis.

Portanto, ao colocarmos em análise o discurso neurocientífico e alguns de seus efeitos, buscamos entender de que modo as pesquisas - como quaisquer outras práticas sociais - estão circunscritas a contextos e visões de mundo e, desta forma, produzem novas práticas, produzindo verdades e desqualificando formas de existência.

A Produção De Saberes Em Torno Da Sexualidade


De acordo com Michel Foucault (1988), a vontade de saber que incide sobre a sexualidade tem início nos últimos séculos, quando houve uma explosão discursiva, transformando a sexualidade em objeto de saber. A fermentação discursiva em torno do sexo, que acelerou a partir do século XVIII, o colocou no campo do exercício do poder, de modo que houve uma incitação a falar cada vez mais do sexo no âmbito institucional, e uma obstinação das instâncias do poder a ouvir falar dele. A valorização constante do discurso gerou inúmeros efeitos de deslocamento, de intensificação, de reorientação, de modificação sobre o próprio desejo, que pautado sob o viés da moral cristã, estabelecia uma intrínseca relação entre saber, poder e prazer.

Durante a Idade Média, a questão sexual tinha-se organizado em torno dos prazeres da carne, vinculando-a a uma noção de pecado e tendo como eixo a sua regulamentação em torno da prática da confissão. No decorrer dos séculos, essa relativa unidade foi dividida pela variedade e dispersão dos aparelhos distintos para falar dele, que tomaram forma na demografia, na medicina, na biologia, na psiquiatria, na política, na moral e na psicologia.  O que significa o surgimento de todas essas instâncias para se falar do sexo?  

A polícia do sexo, como articula Foucault (1988), tem por objetivo a necessidade de regular a sexualidade, através de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição. Dessa forma:

Deve-se falar do sexo, e falar publicamente, de uma maneira que não seja ordenada em função de demarcação entre o lícito e o ilícito, mesmo se o locutor preservar para si a distinção (é para mostrá-lo que servem essas declarações solenes e liminares); cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser assumido por discursos analíticos (Foucault, 1988, p. 30-31).

A proliferação discursiva, através de mecanismos de controle pautados na incitação a se falar do sexo, sancionou formas disciplinares de como a sociedade deve se relacionar com a temática da sexualidade. Tal enunciação, que não tinha o propósito de entender o sexo sobre uma teoria geral, mas através de descrições quantitativas e classificatórias das formas de se relacionar com ele, produziu sexualidades periféricas geradas por aqueles que não se adequavam às normas de conduta sexual estabelecidas. Entretanto, o que se caracteriza não é somente o fato do sexo ter sido objeto de prazer, lei e interdição, mas também de verdade, que se tenha tornado algo essencial, útil, perigoso e temido. Como objeto de verdade, o saber sexual passou a ser um meio para se alcançar a verdade do sujeito.

A ávida busca por conhecimento e a construção de verdades são concepções que precisam ser contextualizadas epistemologicamente. Foucault (2002) nos mostra que o conhecimento não tem natureza, nem essência, ou seja, ele é construído e inventado. Ele se forma como efeito de um jogo, de uma disputa discursiva que busca não apenas designar objetos, mas ao contrário, ao estabelecer uma relação de distância e dominação através de relações de luta e de poder, os discursos atravessam e recriam objetos. 

Pode-se então entender que a noção de verdade não tem natureza e nem é universal, mas que é, cada vez, um resultado histórico e pontual de condições sempre articuladas a relações de poder. Por ser conjuntural, o conhecimento tem um caráter transitório, na medida em que está pautado em certo domínio de saberes que partem de relações de força e de relações políticas em um dado momento histórico de uma sociedade. Por isso é preciso pensar que:

Só pode haver certos tipos de sujeito de conhecimento, certas ordens de verdade, certos domínios de saber a partir de condições políticas que são o solo em que se formam o sujeito, os domínios de saber e as relações com a verdade. Só se desembaraçando destes grandes temas do sujeito de conhecimento, ao mesmo tempo originário e absoluto, utilizando eventualmente o modelo nietzscheano, poderemos fazer uma história da verdade (Foucault 2002, p.27).   

Desde a Idade Média, a confissão se configura como um dos principais mecanismos de extração da verdade. Todavia, ao longo dos séculos, outros mecanismos surgem nesse processo. A Scientia Sexualis (Foucault, 1988), surge dentro dessa engrenagem de produção de verdade pautada no saber sexual, para dizer através de critérios científicos aquilo que cinde o sujeito, sobre o que o determina e sobretudo o faz escapar de si mesmo. Dessa forma, a ciência sexual não visa produzir um saber sobre o sexo através de sua repressão ou negação mas, através do seu desvelamento e revelação, busca esquadrinhar e classificar as formas com que os sujeitos se relacionam com a sexualidade. Cabe-nos colocar em análise a maneira pela qual se constituiu um determinado modo de extorsão da confissão sexual nos meios científicos e indagar-nos quais instrumentos ratificam esse processo. Foucault (1988) aponta uma direção para essas questões:

Confessa-se - ou é forçado a confessar. Quando a confissão não é espontânea ou imposta por algum imperativo interior, é extorquida; desencavam-na na alma ou arrancam-na no corpo” (p.68). Foucault (1988) ainda nos lembra que, ao longo dos séculos, diferentes formas discursivas instituíram a homossexualidade como um pecado, através da religião; ou classificaram-na, através da ciência médica, como patologia. Como efeito dessa disputa discursiva cria-se um novo sujeito a partir da variável sexualidade. Produz-se, assim, o heterossexual – e suas variações – bem como o homossexual. 

Homofobia: Ações Físicas ou Práticas Discursivas?

Segundo o dicionário Michaelis online o termo homofobia significa: 1 Preconceito contra os homossexuais. 2 Ódio aos homossexuais, muitas vezes levando à violência física. Entretanto, as estatísticas mostram que esse conceito sai das palavras e engendra nosso dia-a-dia, evidenciando que a homofobia vai muito além de um conceito, sendo também representado por fatos reais.

De acordo com o professor Luiz Mott, do departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia, a homofobia é uma "epidemia nacional" (Carvalho, 2008). Essa notícia é agravada ao dizer que o Brasil esconde uma atordoante realidade: "é o campeão mundial em assassinatos de homossexuais, sendo que a cada três dias um homossexual é barbaramente assassinado, vítima da homofobia". Partindo desses dados podemos entender que homofobia pode ser analisada como um ato genocida, pois de acordo com o Novo Dicionário Aurélio, tal termo é definido como crime contra a humanidade que consiste em cometer qualquer um dos seguintes atos: 1-Matar membros dos grupos; 2- Causar-lhes lesão grave à sua integridade física ou mental; 3- Submeter o grupo a condições existentes capaz de destruí-lo em todo ou em partes.

Entretanto, remetendo novamente a Foucault (2002) e o efeito dos discursos, cabe-nos a pergunta se homofobia é restrita a atos genocidas - e estes ainda restritos a violência física -, levando-nos a pensar que o significado das palavras ‘matar’ e ‘morte’ vão muito além da morte física.  ‘Matar’ pode também significar desqualificar formas de agir, pensar e existir que podem potencialmente serem feitas a partir de determinados discursos.

Luis Antônio Baptista (1999), em seu texto “A atriz, o padre e a psicanalista - os amoladores de facas”, nos diz:

O fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos, possui alguns aliados, agentes sem rostos que preparam o solo para esses sinistros atos. Sem cara ou personalidade, podem ser encontrados em discursos, textos, falas, modos de viver, modos de pensar que circulam entre famílias, jornalistas, prefeitos, artistas, padres psicanalistas, etc. Destituídos de aparente crueldade, tais aliados amolam a faca e enfraquecem a vitima, reduzindo-a a pobre coitado, cúmplice do ato, carente de cuidado, fraco e estranho a nós, estranho a uma condição humana plenamente viva. Os amoladores de facas, à semelhança dos cortadores de membros, fragmentam a violência na cotidianidade, remetendo-a a particularidades, a casos individuais. Estranhamento e individualidades são alguns dos produtos desses agentes. Onde estarão os amoladores de facas? Já que invisíveis no dia a dia, a presença desses aliados é difícil de detectar. A ação desse discurso é microscópica, complacente e cuidadosa. Não seguem as regras dos torturadores, que reprimem e usam a dor. Ávidos por criarem perguntas e respondê-las, por criar problemas e solucioná-los, defendem um humanismo que preencha o vazio de um homem fraco e sem força, um homem angustiado e perplexo, necessitado de tutela (Baptista, 1999, p.46).

Afinal, o que fazem os amoladores de facas? “Apontar o preconceito seria uma ingênua dedução, uma análise que justifica e alimenta os autoritários ‘pontos de vista’, os relativismos e a ênfase na boa ou má consciência” (Baptista, 1999, p.46).

Ainda segundo ele:

O autoritarismo dos ‘pontos de vista’ funda-se no esvaziamento da implicação coletiva e da construção histórica e sociopolítica do olhar e do outro. O preconceito remetido a uma questão pessoal esvazia suas tramas com o poder, sua eficácia política na manutenção e na desqualificação dos modos de existir. Configurado em questão pessoal, entra no reino da culpa ou da recompensa, materializando-se em individualidades que necessitarão da tutela dos pastores de diferentes procedências, ou seja, pastores da alma, pastores da ciência, pastores da culpa, pastores do medo etc. O que os amoladores de facas têm em comum é a presença camuflada do ato genocida. São genocidas, porque retiram da vida o sentido de experimentação e de criação coletiva. Retiram do ato de viver o caráter pleno de luta política e da afirmação de modos singulares de existir. São genocidas porque entendem a ética como questão da polícia, do ressentimento e do medo (Baptista, 1999, p.49). 

Partindo dessa problemática, o objetivo do presente trabalho é colocar em análise os discursos das pesquisas neurocientíficas a respeito do “cérebro homossexual”. Podemos considerar, portanto, o índice de publicação nessa temática como um analisador. Entende-se como analisador “o que permite o desbloqueio e o que promove a análise, o que permite condensar o que estava disperso, com o objetivo de fazer emergir um material analisável” (Bicalho, 2005, p. 34).

Para tal elaboração, foi realizado um levantamento bibliográfico no portal ISI Web Knowledge utilizando os termos: “Topic=(homosexual)” AND “Topic=(brain)”. Todas as pesquisas se limitaram a busca de artigos entre os anos de 1998 e 2008. Foram realizadas ainda pesquisas a partir das referências dos artigos de revisão sistemática sobre pesquisas quem busquem entender a etiologia da homossexualidade através de um viés biologizante.

Funcionamento Cerebral: Reflexões Sobre o Determinismo Biológico de Sexualidades “Desviantes”

O levantamento bibliográfico indicou um índice de 122 artigos científicos relacionados com a temática do cérebro homossexual, nos quais se pode observar na figura 1, através de medidas de porcentagem, como esse montante se distribui ao longo dos 10 últimos anos. É possível observar um pico de produção de aproximadamente 13,90% no ano de 1999, exatamente no ano em que, no Brasil, a Psicologia estabeleceu diretrizes éticas sobre a atuação dos psicólogos em relação à diversidade sexual, com a publicação da Resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia.

 Figura1: As barras hachuradas revelam, em níveis de porcentagem, a quantidade de publicação dessa temática ao longo dos 10 últimos anos.

Ao analisar os artigos encontrados, foi possível observar que mesmo após a despatologização na American Psychiatry Association em 1974, o tema da homossexualidade continua a ser um tópico instigante e que continua a ser estudado nas pesquisas dentro das neurociências. Tais pesquisas têm buscado encontrar as bases neurobiológicas da orientação sexual, utilizando para isso experimentos com técnicas que buscam encontrar diferenças cerebrais entre pessoas ditas como heterossexuais em oposição das que se declaram homossexuais.

Sob a perspectiva das neurociências, a orientação sexual está relacionada com a atividade e a morfologia das estruturas cerebrais. Em artigo publicado na PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America), Savic e Lindström (2008)  usaram ressonância magnética para avaliar volume cerebral e tomografia por emissão de pósitrons para observar o fluxo de sangue na amígdala - zona do cérebro que está envolvida com percepção, reconhecimento e a formação da memória associada a estímulos emocionais. Participaram desse estudo 90 indivíduos - 25 homens auto-declarados heterossexuais, 25 mulheres auto-declaradas heterossexuais, 20 homens auto-declarados gays e 20 mulheres auto-declaradas lésbicas. Os resultados teriam indicado que homens gays e mulheres heterossexuais têm os hemisférios cerebrais simétricos, enquanto os dois lados do cérebro de lésbicas e homens heterossexuais são assimétricos, com o hemisfério direito consideravelmente maior do que o esquerdo. Além disso, ao examinar a conectividade funcional da amígdala, eles verificaram mais “conexões nervosas” no lado direito de homens heterossexuais e lésbicas, enquanto mulheres e homens gays têm o lado esquerdo dessa região mais “funcionalmente ativo”.

Em estudo anterior, publicado na mesma PNAS, Savic, Berglund e Lindström (2005)  observaram que nem todo o hipotálamo masculino responde a ferormônios femininos e vice-versa. O hipotálamo é uma estrutura envolvida com a regulação de muitas funções do organismo como freqüência cardíaca, pressão arterial e comportamentos mais complexos como aproximação sexual e cópula. Usando a ressonância magnética funcional, eles observaram que o padrão de resposta dos neurônios hipotalâmicos correlaciona-se não com o sexo do indivíduo, mas com sua preferência sexual. Assim, homens e mulheres que se sentem atraídos por mulheres respondem ao feromônio feminino EST; enquanto mulheres e os homens que gostam de homens têm o hipotálamo sensível ao feromônio masculino AND.

Uma das principais justificativas para esse tipo de pesquisa ancora-se na busca do entendimento e explicações a respeito da orientação sexual. Tais hipóteses nos remetem não apenas para seus achados, mas também para a razão ético-política de estudar cérebros de homossexuais em comparação ao de heterossexuais. A scientia sexualis, tal como foi descrita anteriormente, ao esquadrinhar e a categorizar sexualidades, tem como conseqüências o estabelecimento das formas corretas de se relacionar com o sexo. A partir disso, se faz necessário colocar em análise os impactos que essas práticas discursivas a respeito de cérebros de homossexuais produzem em nossa sociedade. A patologização e a perspectiva de cura dos cérebros dos homossexuais podem ser uma primeira resposta, visto que, comparados com o cérebro de heterossexuais eles são entendidos com um caráter desviante.

Ao entender que o processo de criminalização se refere à criação de normas, que são criadas nas possibilidades de suas transgressões, pode-se afirmar que a homossexualidade sofreu e ainda sofre um constante processo de criminalização no qual seus dispositivos biopolíticos foram sutilmente reformulados e aperfeiçoados. Ao serem criados dispositivos neurocientíficos, que buscam entender o que é um “cérebro heterossexual”, dito como normal, em contraste ao “cérebro homossexual”, é produzida uma noção de normalidade de funcionamento fisiológico do cérebro, onde o homossexual ao transgredir esse padrão estabelecido é considerado como naturalmente desviante, errôneo e anormal e, portanto, patologizável e passível de cura.

Para entender melhor essas questões são necessárias interlocuções com alguns conceitos foucaultianos, como a arqueologia e genealogia. Ao analisar os argumentos e critérios que vão falar sobre alguém ou sobre uma sexualidade, remete-nos a questões importantes que nos fazem perguntar quais sujeitos são produzidos a partir dessas relações de saber e de poder e porque esse determinado conhecimento neurocientífico recebeu o estatuto de verdade. Foucault (1988), ainda, nos leva a pensar: qual é o lugar do intelectual, no nosso caso o neurocientista, na produção desses saberes que, aliados a exercícios de poder, produzem processos de subjetivação?
 
As pesquisas sobre os “cérebros homossexuais” nos levam a problematizar a construção de fatos científicos e seus efeitos em nossa sociedade. De acordo com olhar de Stengers (2002), a ciência pode ser entendida como um meio de mobilização do mundo por meio de seus produtos científicos, onde o papel do cientista é produzir interesse, negociar e intrigar. Essa negociação, que se estende desde a obtenção de aliados que ratifiquem determinados pressupostos, quanto à superação de outros pressupostos com visões divergentes, são meios que fazem com que tal achado experimental tenha uma identidade e seja entendido como uma descoberta científica. De acordo com a autora, deslocamentos como do laboratório para a indústria e outros meios de negociação são os meios que possibilitam que um fato seja científico, levando-nos a pensar a ciência como um entrelaçamento de política e razão, que a partir disso, cria-se os meios que possibilitam a construção de fatos científicos, e de verdades. Do mesmo modo Latour (2000) chama a atenção para o estudo de uma ‘ciência em ação’, colocando em análise a possibilidade de seus efeitos. A idéia dicotômica de interior e exterior perde sua importância na medida em que o que se coloca em foco é a construção de uma rede de atores que tornam possível a existência de um cérebro homossexual, o mérito do ciência e a produção de remédios para a cura da homossexualidade.

Podemos então entender a medicalização da sexualidade e o surgimento de fármacos que visam a cura do homossexual como o Hetracil (© Shetty Pharmaceuticals), como analisadores, que nos levam a problematizar uma:
 
Concepção de ciência em que tudo, no mundo da natureza ou no mundo dos homens, pode – e deve – ser transformado em variáveis, em quantificações; uma concepção em que o social é reduzido a mais uma variável, é tornado abstrato, imponderável e imutável (...) Tentam nos reduzir a seres estritamente biológicos. Células sem contexto, sem cultura. Genes atemporais, sem historia, sem política (Moysés e Collares, 2007, p.164-165).   

Segundo Foucault (1988) o estado gerenciador da morte vai se transformando no estado administrador da vida, a partir do século XVIII. O Estado passa a se ocupar de um novo sujeito, o conjunto de súditos se transforma em sujeito coletivo. É um poder que atua, positivamente, sobre a vida, que busca a sua gestão, com controles precisos e regulações de conjunto. Para que um poder que em suas mais altas prerrogativas busca causar a morte, homogeneizar as formas de existência e massificar subjetividades, quais instrumentos são utilizados para garantir, sustentar, multiplicar a vida e pô-la em ordem? Para um poder desse tipo, a pena capital, é o limite, o escândalo e a contradição. Daí o fato de que esse poder não pode ser mantido a não ser invocando, nem tanto a grandiosidade do crime quanto a monstruosidade desse “criminoso”, sua incorrigibilidade e a salvaguarda da sociedade.

Esse poder precisa mais do que um discurso, necessita de uma espécie de “um libreto para seu espetáculo”. Tal reflexão nos remete à ciência, à mídia e às agências de comunicação social, como atores sociais difusores de processos de criminalização. O discurso criminológico se dá na esfera das comunicações. Desse modo, os lapsos, metáforas, metonímias, todas as representações da homossexual como sujo, imoral, vadio e perigoso formam o controle social e informam o imaginário social para as explicações da questão da imoralidade e a destruição da família higiênica na contemporaneidade.

Além de permear o imaginário social, essas práticas discursivas geraram políticas de esquadrinhamento, estratégias de controle, perseguição e aniquilação, bem como adestramento e disciplinarização daqueles que impediam (e impedem) a garantia da ordem, da moral e dos “bons costumes”. Diante do apresentado, surgem questões: É possível mudar essa situação? De que maneira a Psicologia se apropria dessas relações de saber-poder? E quais caminhos de resistência podem ser traçados pelos profissionais da Psicologia?

Ao considerar a sexualidade como uma produção sócio-histórica, sendo dessa forma tida como não natural, mas construída, seria possível transformá-la? De que forma seria possível produzir outras demandas sociais que não busquem processos de criminalização e de patologização da homossexualidade? Uma direção para essas questões se faz na mudança efetiva no campo social, que hoje dependeria de uma mudança da subjetividade que dirige o funcionamento de nossa sociedade. Se nossas práticas discursivas produzem efeitos no mundo ao construírem objetos nos registros sociais, um caminho para essas questões se faz na criação de práticas “psi” que propiciem políticas públicas, que gerem novos rostos, novas identidades e novas formas de se relacionar com o mundo e a sexualidade.

Pretendemos, com este artigo, colocar em questão a pertinência ética de determinadas pesquisas. Não se trata de um repúdio às universidades, tampouco contra as pesquisas, em geral, sendo seu objetivo suscitar o debate - o que é salutar numa democracia e deve ser este o nosso exercício cotidiano. Mas, certamente, colocarmos em análise sua existência, por reforçar, mediante a escolha dos homossexuais como ‘objeto’, as discriminações e estereótipos que já marcam certos sujeitos. Nesse sentido, cumpre lembrar que nenhuma pesquisa se limita a seus resultados: qualquer pergunta - e pesquisas formulam perguntas - pressupõe uma afirmação. E a afirmação das pesquisas em pauta admite a existência de cérebros "homossexuais" em oposição a "não-homossexuais", ignorando a rede de poderes que se articula com tal suposição, mesmo que pretenda investigá-la cientificamente.

Não cremos ser possível fazer pesquisa sem a devida reflexão sobre as condições e efeitos políticos da mesma, sobre as implicações de seus temas e métodos, sobre o papel de cada ator na construção do que, com demasiada facilidade, se diz ser "o real". Pois, no nosso entendimento, não é algo a ser constatado ou desvelado, mas uma construção cotidiana forjada em meio a lutas e conflitos. Entendemos que nossas práticas não são insípidas, incolores e inodoras e que a suposta neutralidade científica está vinculada de uma concepção política do que é ciência e do lugar que ocupamos, enquanto universidade, na formulação de práticas e políticas sociais.

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